Wednesday, April 12, 2006

Reinventar a Universidade

Óscar F. Gonçalves
Professor Catedrático do Instituto de Educação e Psicologia


A Revolução Francesa e o movimento romântico inauguraram uma era no decurso da qual acabámos gradualmente por apreciar o papel histórico da inovação linguística (...). Precisamos de uma redescrição do liberalismo, segundo o qual este seja a esperança de a cultura no seu todo poder ser "poetizada".

Richard Rorty



Estávamos na primavera de 1988 e vivia eu então os encantamentos de jovem professor na Universidade da Califórnia em Santa Barbara. Sentia-me eu na altura uma espécie de refugiado do sistema universitário português onde proliferavam o autoritarismo e a conflitualidade. Nesse dia compartilhava o almoço com um jovem psiquiatra romano em pós-doutoramento no meu departamento quando se acercou de nós uma estudante italiana atraída pelo sotaque solidário do seu patrício. Como sempre acontece nestas situações de encontro de navegadores do conhecimento a pergunta sacramental não se fez esperar: "O que fazes por aqui?", perguntou a jovem. Fez-se um silêncio entrecortado pelo chilrear harmónico dos pássaros, o meu amigo aspirou o ar morno do Pacífico, contemplou o infinito e respondeu com o carregado ênfase da expressividade de um romano: "Sou um livre pensador!". Estas palavras tocaram-me a ponto de, por instantes, sentir a visão turva pela simpatia de experimentar também, naquele momento e naquele lugar, um sentimento profundo de liberdade, mas também da maior igualdade e fraternidade com os habitantes daquele campus plantado entre os penhascos do pacífico e as montanhas circundadas por aquilo que os autóctones apropriadamente designaram "caminho do céu". Recordo-me de ter sentido que o meu parco salário era largamente compensado por me proporcionar, no aqui e agora, a vivência do ideário da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.

Infelizmente este idílio não durou muito e o vislumbrar episódico da utopia libertária foi bruscamente interrompido pela convocatória para o serviço militar. Confesso que cheguei por momentos a alimentar a ideia de juntar ao exílio intelectual a condição de refractário militar, assumindo então, quem sabe se para o resto dos meus dias, o verdadeiro e materializado estatuto de exilado. Por razões que eu próprio tenho ainda dificuldade em entender, não o fiz e em Agosto, depois desta fugaz experiência de alforria, era trincafiado no quartel de Tavira. O contraste não podia ser maior: a liberdade dava lugar ao encarceramento e a igualdade à humilhação, restando-nos unicamente a fraternidade clandestina típica entre os desvalidos do poder.

Alguns meses depois a universidade portuguesa resgatava-me ao quartel e apresentava-me eu de novo ao serviço da academia com uma "guia da marcha" (sic) que literalmente me ordenava a apresentar nas "fileiras da universidade" (sic). O presidente do conselho directivo recebeu-me com posturas de general e eu perfilei-me em sentido a aguardar a distribuição do mister. O pré de miséria era agora um salário aceitável, mas a linguagem que configurava a orgânica institucional não diferia significativamente daquele que me oprimia na caserna. Os jogos da linguagem eram os mesmos: a compartimentação dos pelotões e das armas era agora substituída pela compartimentação dos departamentos e dos saberes; a hierarquia dos postos militares dava agora lugar à hierarquia da carreira docente; o provincianismo patrioteiro ao provincianismo das faculdades.

Preocupa-me que grande parte da discussão que se gera em torno da necessidade de uma reforma universitária, aliás unanimemente reconhecida, se prenda com questões meramente acessórias ou mesmo circunstanciais. A transformação da universidade impõe a necessidade de construir para as raízes da sua fundamentação uma nova linguagem de modo a proporcionar aquilo que Rorty definiu como a reinvenção de uma nova utopia capaz de materializar no espaço universitário o ideário da liberdade, igualdade e fraternidade. Um novo vocabulário que assegure à universidade a sua condição de espaço livre para a criação do conhecimento e construção social.

1.
Em primeiro lugar, o conceito de compartimentação terá que ser substituído pelo de transversalidade. A compartimentação é herdeira da tradição modernista de departamentalização dos saberes, um modo escorreito de arrumar pessoas e conhecimentos e assim assegurar a necessária corporativização da sociedade. Resulta daqui a divisão do conhecimento, a divisão do trabalho, a divisão dos territórios, a divisão das raças e toda a panóplia de atitudes xenófobas que este processo de diástase alimentam. Por exemplo, um caso real (ainda que raramente frequente) de um professor universitário que fez a sua formação inicial em filosofia, depois licenciou-se em medicina tendo-se mais tarde doutorado em psicologia, é um espécime que jamais sobreviverá competitivamente no espaço de saberes universitários bem compartimentados, alguém demasiado próximo da ascendência enciclopedista e incapaz de se adaptar aos ditames do aforismo como domina o modernismo universitário: "saber cada vez mais de cada vez menos até que se saiba tudo de absolutamente nada". O professor emancipa-se, neste contexto, pela fronteira limitada do seu saber e não pela sua tranversalidade. Associado a este facto cria-se um fenómeno de curiosa reprodução da compartimentação. A sobrevivência desta forma compartimentada de construir conhecimento obriga à multiplicação desmesurada de departamentos. Estes departamentos inseminam planos de estudos de licenciaturas ou mestrados de espectro ridiculamente estreito cuja função é unicamente a sacralização de um microsaber. O conceito de transversalidade obrigaria a impor limites a este reprodução geométrica de saberes e departamentos facilitando, promovendo e gratificando, para docentes e discentes, a circum-navegação do conhecimento através de uma diversidade de arranjos indisciplinados. Talvez assim um engenheiro do futuro acabasse por saber escrever e um escritor dos tempos vindouros percebesse alguns aspectos básicos da termodinâmica.

2.
Em segundo lugar, o pilar da hierarquização terá que dar lugar ao da horizontalidade. Com efeito a organização das universidade portuguesas faz lembrar o sistema de organização social que alguns etologistas descrevem nos galináceos com a curiosa designação de "ordem da bicada". Sempre que um grupo destes animais se encontra dispara um intensivo jogo de bicadas entre os seus membros até que esteja finalmente estabelecida uma hierarquia, saber quem bica em quem. O sistema de organização social nas nossas universidades não seria significativamente distinto não fosse a ordem da bicada estar institucionalmente definida à partida pelo código linguístico do estatuto da carreira docente: o professor auxiliar bica no pobre assistente (que é aliás o único que só é bicado); o professor associado bica no professor auxiliar e no assistente; finalmente, o professor catedrático bica em todos. É óbvio que esta configuração hierárquica impõe fortes constrangimentos à natural necessidade de autonomia e liberdade indispensáveis para o processo criativo de construção de conhecimento. O problema é agravado pelo facto de só alguns ascenderem, em virtude da natureza piramidal da carreira, à condição de "bicador" ex catedra. Talvez se o princípio fosse o da horizontalidade, com os correspondentes sentimentos de autonomia e liberdade, não houvesse essa competição tão desenfreada por ascender à condição seguinte. A condição de autonomia e liberdade, o direito à não vassalagem, deveria ser independe da posição na carreira e qualquer docente ou investigador universitário deveria, pelo menos a partir do seu doutoramento, ter todas os deveres e prerrogativas de um agente sénior da investigação e docência. A noção de horizontalidade implicaria, claro está, que todos tivessem potencialmente acesso a todos os lugares da carreira, limitados unicamente pelo seu mérito científico e pedagógico e não por circunstâncias da antiguidade ou de política institucional de manutenção do poder.

3.
Em terceiro lugar a camisa de forças de um protótipo de universitário terá que ser substituída pela assunção da multiplicidade, isto é, o reconhecimento de que há vários modos de estar na academia e de que é desta diversidade que se enriquece o serviço académico. De um modo mais ou menos velado circula no claustro universitário a configuração de um protótipo que é exemplarmente captado pelo adágio de inspiração norte-americana "publicas ou pereces", ou como alguns fazem questão de glosar "publicas e pereces", uma vez que a tarefa de publicar a todo o preço se mostra inglória e, mais tarde ou mais cedo, tudo aquilo que somos e produzimos acabará como minério da existência. Vivem hoje os universitários perseguidos pela inspecção aturada e contabilistica da sua produção científica: número de artigos; número de artigos multiplicado pelo índice de impacto da revista; número de citações, etc., etc. Escravos desta prototipia os professores fecham-se nos gabinetes escrevendo, cada vez mais e cada vez mais rápido; fecham-se horas sem fim na clausura dos seus laboratórios na vertigem da produção de dados. Os alunos, esses, acabam por se transformar num mero epifenómeno da universidade, ou quanto muito no caso do estudante graduado, um instrumento nesta bem oleada cadeia de produção científica. Ignora-se assim que ser professor, passar horas de dedicação aos alunos e ao ensino é talvez a forma mais nobre de construir conhecimento, torná-lo universal, dar-lhe um sentido comum, torná-lo reprodutível. É claro que isto não se contabiliza em termos de número de artigos e é dificilmente mensurável no imediatismo mercantilista em que se transformou a avaliação da actividade do professor.

4.
Finalmente um quarto e último aspecto, a clausura provinciana terá que ser substituída pela mobilidade. As universidades portuguesas são hoje a mais clara ilustração do provincianismo que assola a generalidade das nossas instituições. Na sua generalidade os assistentes estagiários são recrutados entre os licenciados da própria universidade, os assistentes entre os assistentes estagiários que nessa universidade completaram o seu mestrado, os professores auxiliares entre os assistentes que aí fizeram o doutoramento e excepcionais são os casos em que num concurso para professor associado ou catedrático é colocado um professor proveniente de outra universidade. É tudo gente do mesmo bairro e, se possível, da mesma rua. O interessante é que nem por isso os laços de solidária amizade se criam. Cria-se, isso sim, um perverso efeito de consanguinidade e dependência onde vão proliferando diferentes ramos familiares cada vez mais fechados sobre si. O sistema fecha-se sobre si mesmo e o conhecimento deixa de ser pensado universal e globalmente. A vocação universalista da academia obrigará a incentivação de um sistema de mobilidade generalizada, privilegiando a fertilização cruzada entre diferentes instituições, através de incentivos à mobilidade de professores e estudantes entre universidades nacionais e estrangeiras. Não deixa de ser curioso notar que a política sugerida pelo conselho de reitores vai no sentido diametralmente oposto. Incapazes de controlar o fenómeno dos "turbo professores" foi instituído um sistema de pagamento entre universidades para serviços prestados pelo professor alienígena que são verdadeiras coimas para a mobilidade dos docentes. Um desafio muito mais criativo seria o de instituir e socializar esta mobilidade, mas isso implicaria um novo modo de pensar a universidade.

Em suma, reinventar a universidade implicará necessariamente reconstruí-la como espaço de liberdade, igualdade e fraternidade e isso, como sugeria Rorty, obrigará à criação de uma nova linguagem, uma linguagem em que os conceitos de transversalidade, horizontalidade, multiplicidade e mobilidade se assumam como os pilares de uma nova arcádia.

2 Comments:

At 12:34 PM, Anonymous Anonymous said...

1. Quem aqui se identifica é, ou catedrático, ou aluno. O resto do pessoal não assina porque, obviamente, tem medo.Como eu.
1.1. O que é uma universidade do medo? Algo contra-natura.
2. O ambiente que se vive na UM é deprimente: exceptuando talvez os catedráticos, por vezes tidos por inimputáveis, parece que estamos todos a mais, sujeitos a "ratios" que fluctuam de acordo com o mês ou a estação do ano, mas cuja lógica matemática ninguém parece conhecer.Quanto à lógica política, ela é óbvia: serve para nos encostar à parede, agradecendo a todos os santos o facto de ainda não termos sido postos na rua.
3. Um dia, gostava de viver numa universidade em que o medo não dominasse e eu pudesse ter de facto liberdade de expressão. E gostava também de poder votar nas eleições para reitor: uma pessoa, um voto.Usem "pesos específicos" razoáveis, mas mudem este sistema. Se posso votar para a escolha do Presidente de uma Escola, por que não hei-de poder votar nas eleições para Reitor?
4. No medo desenvolvem-se marionetes e hipócritas, não verdadeiros académicos.
5. O medo e o autoritarismno têm um poderoso efeito de contaminação. Numa "cultura" autoritária, quase todos acabam a querer mandar em alguém. Ao menos o regime militar é mais claro. E não se tem de cumprimentar ninguém de mão - basta "bater a pala".Mais higiénico, muito menos hipócrita.

 
At 8:03 AM, Anonymous Anonymous said...

Caro Professor Óscar Gonçalves,

É muito interessante a sua reflexão, sem dúvida. Uma síntese de ideias várias sobre a superior condição em que o espírito humano realiza plenamente o seu potencial de criação, seja o aluno na aprendizagem, seja o investigador na produção científica.
Mas, como é seu timbre, você detém-se na estratosfera do debate. Sobre actos e factos concretos, sobre a conduta de pessoas responsáveis, sobre o estado concreto da UM neste momento, nem uma palavra. «Atravessar-se» na defesa de caminhos e soluções concretas que sejam a expressão da coerência da sua conduta académica com as ideias que defende, isso não faz.
Não chega sequer a dizer «Apoio a candidatura do Professor Moisés Martins a Reitor da UM». Você não se compromete com essas coisas menores. Coloca-se antes no plano de um etério estado ideal, ao qual você já pertence, apesar da nossa pobre UM, sem se dar conta de que esse estado ideal é para o comum dos mortais uma miragem que nada diz às necessidades “terrenas” do aqui e agora. Nenhum povo se detém na filosofia quando tem fome.
Fez o seu exercício de intelectual brilhante. Está feito! Mas é pouco. Sem o compromisso de quem passa do pensamento à acção, disponibilizando-se a “sujar as mãos” na realidade concreta para a transformar, não haveria a candidatura de Moisés Martins.

P.S.: Eu sou mais um anónimo. É que eu tenho família e não tenho o direito de fazer os meus filhos pagarem o preço de me dar ao luxo de ser livre. Está cada vez mais difícil a vida dos jovens e o trabalho precário dos pais carrega nuvens mais pesadas no seu horizonte.

 

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