"Universidade e Melancolia"
1. O espírito de modernidade
Ao abandonarmos hoje a logosfera pela porta da electrónica e dos hipermédia, configurando uma sociedade do conhecimento universal, a ser instaurada pelas novas tecnologias da informação, é de um sonho antigo que falamos, o sonho que fez a modernidade. Mas não podemos deixar de pensar no que foi feito deste sonho – um sonho que com o tempo se converteu em assombração. É verdade, o sonho de modernidade desorbitou e nos nossos dias passou a esgazear-nos.
O espírito que anima este novo mundo da “sociedade da comunicação generalizada” (Vattimo, 1991: 12) - o nosso mundo - é, sem mais, o mesmo espírito que na Idade Média propulsa as universidades e que nos séculos XVII e XVIII anima o paradigma científico (Fidalgo, 1996: 37-47). Dir-se-á que o espírito de modernidade irradia hoje por todo o universo como uma bem-aventurança, ao ser soprado pelos novos meios de comunicação e de informação. As novas tecnologias da informação projectariam numa escala global o espírito da circulação de ideias, saberes e pessoas, o espírito totalmente livre, que universaliza o conhecimento. Mas pode dizer-se, igualmente, que era já esse mesmo espírito que corria livremente nas universidades medievais e nas academias do iluminismo. Estamos a falar de um mesmo espírito de modernidade, um espírito animado por uma mesma ideia de tempo histórico, um tempo comandado pelo princípio escatológico
O espírito da modernidade é, pois, a historicidade; e a escatologia, que comanda esta ideia de um tempo histórico, é a razão da esperança. Dando conta da experiência de um sujeito diminuído pela imperfeição e pela insuficiência, a escatologia profetiza, todavia, que uma tal experiência acabará no final dos tempos, com o regresso à casa do Pai, ao significante pleno, sendo o mal superado e a morte destruída.
A história da modernidade é a história do cristianismo, uma vez que é no cristianismo que encontramos a origem do pensamento escatológico. O imaginário moderno do tempo é, com efeito, fundado pela utopia cristã, uma esperança tornada possível pela princípio escatológico, tornada possível pela ideia de emancipação, superação e redenção. A razão moderna, razão escatológica, realiza-se na experiência de um dia termos pecado e na esperança de virmos a ser libertados, qualquer que seja a nossa condição, homem livre, escravo, mulher, estrangeiro, emigrante. O exercício moderno da razão tem no perdão a sua ética (2)Pode parecer excessivamente cristã esta caracterização da historicidade. Mas o que é um facto é que a modernidade laica mantém este dispositivo temporal, o de “uma grande narrativa” (Lyotard, 1979) que promete a reconciliação do sujeito consigo mesmo e com o seu semelhante. O Iluminismo, o Romantismo, o Marxismo, e hoje a Cibercultura, têm o mesmo conceito de historicidade que o Cristianismo. Laicizaram, é certo, o princípio escatológico, mas mantiveram-no. Em todas estas “grandes narrativas” um mito das origens estabelece a história sobre um passado imemorial. E a relação plena e inteira sonhada no começo constitui-se como a promessa de um fim último. O imaginário moderno vive neste círculo hermenêutico: projecta a sua legitimidade para diante, mas funda-a numa origem perdida. Neste sentido, a escatologia, que nos promete a redenção, vai a par da arqueologia, que nos garante um regresso à casa paterna.
Estou a pensar na lei de Deus do paraíso cristão, e também na lei da Natureza do direito natural fantasmado por Rousseau, e ainda na sociedade sem classes imaginada por Engels no princípio dos tempos, antes da família, da propriedade privada e do Estado. Estou finalmente a pensar naquilo que na Cibercultura ressoa a Jardim do Éden e a Torre de Babel, quero dizer, a árvore do conhecimento universal e a comunicação universal desse mesmo conhecimento.
Sonhando com a universalização do conhecimento, e também com a universalização da comunidade científica, o imaginário universitário foi um imaginário moderno desde a sua origem medieval. As figuras que desde o início mobilizam a universidade são as figuras de emancipação e de superação histórica. Ao sonhar com a universalização do conhecimento, e também com a universalização da sua transmissão, a universidade apresenta-se-nos assim, logo na origem, como uma forma escatológica, uma forma utópica e esperançosa de encarar o tempo.
O sonho que a Universidade configura no século XIII supõe que a vida dos homens se organize como uma história de sentido, realizando a promessa da relação plena e inteira que havia sido sonhada num começo imemorial. Nesse tempo de catedrais, com longilíneas agulhas de pedra a demandarem os céus, a cultura era toda a verdade da Universidade. Hoje, no entanto, quem é que pede cultura ao ensino e à investigação? Exige-se-lhes qualidade, e quer-se que toda a qualidade seja de utilidade. Ensino e ciência que não sejam úteis parecem definitivamente condenados. De um ponto de vista ético, é sem dúvida uma alteração considerável.
Na sociedade da informação que é a nossa, a Universidade age, de facto, cada vez mais, como um qualquer meio de comunicação social. Também para a imprensa houve um tempo em que a veracidade de uma notícia era todo o seu valor. Hoje, todavia, o chefe de redacção ou o director de um jornal já não exigem que uma informação seja verdadeira. Querem é que ela seja interessante. Se não for interessante, não é útil. E se não tem utilidade, não vale a pena publicá-la.
Vivemos um tempo em que só parece justificável socialmente aquilo que é eficaz, aquilo que é instrumental, aquilo que, numa palavra, serve os desígnios de uma razão pragmática. Toda a gente sofre hoje desta convicção generalizada de ter direito a tudo: ao respeito, à expressão, ao diploma, ao emprego, ao êxito social. E é à Escola, designadamente à Universidade, que é cometida a tarefa de travar esta luta, e de assim garantir a realização deste sonho: uma promessa de sucesso, sendo todo o sucesso ganhar, e ganhar sempre.
Para dar conta do seu comportamento no mercado, para dar conta da sua eficácia, o ensino superior entendeu mergulhar em intrincados processos de auto-avaliação, interna e externa. Aos cursos pergunta-lhes insistentemente pelo destino dos seus licenciados. Aos docentes obriga-os, de forma organizada e sistemática, a dar conta de um sem número de empecilhos académicos, que a supervisão pedagógica justifica. Aos investigadores impõe-lhes uma taxa de produção científica e projecta alinhá-los num ranking de irradiação académica, medida esta pelo cúmulo das citações feitas por terceiros da obra científica de cada investigador. Aos alunos pede-lhes o controlo do desempenho dos seus professores, não vão estes abrandar no interesse pelo pedagogismo e pelo didactismo, em benefício da actividade crítica e científica.
Servindo o mercado como único senhor e obedecendo às exigências da competitividade, como se a razão liberal fosse hoje o verdadeiro tribunal que julga da qualidade académica, a Universidade acabou por se descentrar e passou a funcionar sobre eixos de sentido que não são os seus, fazendo da esquizofrenia o seu estado permanente (3).
O insucesso escolar deixou entretanto de ser do aluno e passou a ser da própria instituição, que entendeu negar-se a si mesma. E a Universidade nega-se a si mesma ao organizar consultas regulares para registar a opinião que os alunos têm dos seus professores e dos programas das disciplinas leccionadas. A Universidade nega-se a si mesma, quando por todo o lado e sempre quer é comunicar, quer é escutar, quer é pedagogia e supervisão, esquecendo a sua obrigação de ensinar.
É verdade que a Universidade não promove já suficientemente uma desejada mobilidade social, sendo neste sentido cada vez mais limitado o seu contributo para a democratização do país; é verdade também que o discurso científico é hoje um discurso entre outros, tendo deixado de poder erigir-se em tribunal da razão; é verdade ainda que o ensino superior se mostra incapaz de responder à pressão crescente das exigências sociais (Santos, 1994: 163-201).
Num tempo arredio às imaterialidades, tempo de escassez, sem rocha, cabo ou cais, a Universidade já dificilmente é essa outra linguagem, que desfaz as aparências e nos ilumina. Numa paisagem de ruínas, onde deuses e homens perderam o esplendor, a Universidade é cada vez menos um exercício de memória e uma reserva de afectos. A Universidade tem dificuldade em figurar o sonho e a abertura do mundo.
Tendo perdido a centralidade, a Universidade viu nos últimos anos crescer sobre si a pressão social. E, assarapantada, resigna-se a que os alunos deixem de ser alunos (com a obrigação de aprender) e passem a ser idolatrados como 'juventude'; assarapantada, aceita que a cultura e a investigação se rendam ao culto da tecnologia e do futuro enquanto tais; assarapantada, mobiliza-se atrás de uma ideia equivocada de sucesso.
Quer isto dizer que o ensino se atola no pedagogismo, uma coisa mole, sem 'corpo' real, sem o tempo do 'outro', sem exigência ética; quer isto dizer também que a investigação deposita no mercado e na competicão todas as esperanças de redenção, sucumbindo ao sistema; quer isto dizer ainda que o serviço à comunidade é muitas vezes um mero pragmatismo, uma pressa indecorosa, um fazer sua a convicção generalizada de que temos direito a tudo e de que tudo tem um preço.
E, no entanto, a meu ver, a Universidade não pode ceder; a Universidade não pode resignar-se a que as políticas académicas se confinem a estratégias de gestão e as necessidades do crescimento se acomodem a respostas de carácter exclusivamente tecno-instrumental. É tarefa da Universidade aprender e ensinar a ver, e também aprender e ensinar a pensar. Aprender e ensinar a ver, ou seja: habituar os olhos à calma, à paciência, deixar que as coisas se aproximem de nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados (Nietzsche, 1988: 67). E aprender e ensinar a pensar, quero eu dizer, aprender e ensinar uma técnica, um plano de estudos, uma vontade de mestria, - que o pensar deve ser aprendido como é aprendido o dançar, como uma espécie de dança... (Ibidem: 57-58).
3. O nosso imaginário trágico e a sua melancolia
A razão histórica, nos termos em que foi elaborada pelo Cristianismo, laicizada depois pelo Iluminismo, e reutilizada hoje pela Cibercultura, a razão histórica, dizia, assente nas ideias de continuidade, causalidade e progresso ininterrupto, tornou-se uma "doença" - uma doença que nos impede o acesso à temporalidade, quero dizer, que nos impede a apreensão do mundo como experiência (4).
Esta doença, que Nietzsche já havia diagnosticado na Segunda Intempestiva, tem vindo a acentuar-se com o desenvolvimento dos média. A actualidade, o que está "in actu", têm-na transformado os média
Sobretudo com a explosão da técnica, o nosso tempo acelerou, e nós fomos alienados da nossa condição propriamente histórica. Transformada na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante, que a nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele, a nossa vida é hoje a imagem de um mundo sem acontecimentos, e só com notícias, um mundo em que cada vez menos se vive, mas tudo se exibe (Guerreiro, 2000: 109) (5)“Crise da experiência”, portanto – foi esse o diagnóstico feito em tempos por Walter Benjamin, e é esse também o diagnóstico feito mais recentemente por Giorgio Agamben (2000: 20). E com efeito, o nosso tempo vive hoje anestesiado, sendo cada vez menor o seu “compromisso com a época e com as ideias que a motivam” (Benjamin, 1993: 490).
Chafurdando sem esperança num quotidiano transformado na sua transcrição mediática, uma transcrição ruidosa e incessante, que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele, o nosso tempo parece no entanto viver feliz, reconfortado no regaço das tecnologias, dos média e dos centros comerciais, um regaço que lhe proporciona viagens tranquilas, aventuras sem risco, ao reino da evasão, do exotismo e do fantástico.
A todo o momento são-nos administrados “terror sem horror, comoção sem emoção, compaixão sem paixão” (Teresa Cruz, s.d.: 112), mas a cidade dos homens, que se encontra abismada pelo fantasma da transparência comunicacional, deleita-se nesta calda de emoções, que traveste de uma euforia puxada à manivela a aventura humana. E lá vai gozando o panorama, rendida às telenovelas, aos big brothers, aos masterplans e a outras tão tranquilas quão soporíferas viagens.
Crise da experiência, sem dúvida, e também o trágico como forma do imaginário na era mediática. Invariavelmente, as aberturas dos telejornais estão hoje por conta da tragédia e da catástrofe. Como se um fatum inexplicável cobrisse a cidade dos homens, conduzindo-a por veredas desconhecidas, e uma vontade insondável se sobrepusesse a toda a acção humana, os telejornais começam por dar a voz aos deuses, e só depois se ocupam dos humanos e das suas insignificantes acções: abrem com os acidentes mortais, os actos tresloucados que semeiam sofrimento e morte, os crimes hediondos, que desafiam qualquer racionalidade, os efeitos de uma qualquer catástrofe natural, seja temporal, terramoto ou ciclone.
Dou a palavra ao narrador. Estamos na Páscoa, no equinócio da Primavera. Como sempre acontece nesta quadra, um deus em desvario espalha a devastação pelas estradas do país. O sacerdote, um capitão da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, em traje de gala, mas com ar compungido, apresenta os números da desolação: desta vez foram 27 os mortos, 84 os feridos graves, 670 os feridos ligeiros. Nenhum Édipo parece capaz de livrar a cidade desta fatalidade, que ciclicamente se repete, não apenas no equinócio da Primavera, mas também no solstício de Inverno, por alturas do Natal, e noutras ocasiões ainda. O sacerdote está a ponto de rasgar as vestes, tamanha é a desgraça, “senhor automobilista, seja prudente, conduza com segurança”. Enquanto isto, tal um coro grego, o fundo do ecrã repete o eterno movimento do mercado financeiro, o perpétuo sobe-e-desce das cotações na bolsa.
O jornal televisivo apresenta-se-nos assim na forma de uma narrativa mítica. O futuro, que o telejornal narra no passado, não parece reservar-nos hoje nenhuma esperança. Só tem sentido falar de esperança quando a um sujeito da história é prometida uma perfeição final. Ou então, quando o próprio sujeito da história se promete a si próprio essa perfeição. Ora, o que se passa no telejornal significa o fim de todas as esperanças. O conteúdo da narrativa não nos dá qualquer ilusão a esse respeito. Se a sua abertura havia sido fabulosa, com a voz dos deuses a ribombar por cima das nossas cabeças, o fecho não ecoa menos fantasticamente. Com novidades que a todo o instante chegam de Delfos, o Tirésias de serviço conta o caso de uma ovelha que nasceu sem quaisquer membros superiores ou inferiores, e logo passa a um outro caso, o de o primeiro clone humano já levar oito semanas de gestação, coisa fabulosa, sem dúvida, como fabuloso já havia sido, aliás, uma mulher ter engravidado aos sessenta e cinco anos - esse é já um outro caso (ou não terá sido sempre o mesmo? Se atendermos ao ensinamento de Vladimir Propp, e também de Algirdas Greimas e de Claude Lévi-Strauss, não parecem restar dúvidas: “o conto é sempre o mesmo”(6). Pelo meio da narrativa televisiva desfilaram, entretanto, revoluções, guerras, crises, deliberações, invenções(7). Exilada da escatologia, e portanto “em sofrimento de finalidade” (Lyotard, 1993: 93), a narrativa televisiva expõe a crise desta época, o seu mal-estar, a sua melancolia.
A acreditarmos no poeta Paul Celan (1996: 46), vários acentos convêm ao tempo: o agudo da actualidade, o grave da historicidade e o circunflexo da eternidade – o circunflexo que é um sinal de expansão. É meu entendimento, no entanto, que o tempo perdeu nos nossos dias todos os seus acentos. A historicidade, o acento grave do tempo, o acento da nossa responsabilidade pelo nosso estado e pelo estado do mundo, é hoje uma “doença”. A actualidade, o acento agudo do tempo, têm-na transformado os média
Repito, é o corrupio da notícia, e é também a recitação de um mesmo conto. Já o sabemos, no entanto, toda a narrativa mítica é melancólica, ela apenas levanta voo onde o real está em falta ou abre brechas. Como bem observou Giorgio Agamben (1995), este é um tempo de “meios sem fins”. E por ser um tempo de meios sem fins, nada mais natural que tambémna Universidade, sem esperança, em sofrimento de finalidade.
É de corrupio da notícia e de recitação de um mesmo conto que nos fala ainda a aplicação da ideia do marketing ao sistema de ensino. Vemos vingar hoje na Universidade a ideia de apenas colocarmos no mercado produtos com forte probabilidade de serem comprados. Acontece, no entanto, que uma vez convertido o ensino em comércio, os professores, agora reciclados como profissionais de serviços e consultores, ficam subordinados às escolhas e às decisões dos directores comerciais, ou seja, aos directores das Escolas e Faculdades, que são quem centraliza a direcção de um tal comércio. A avaliação do produto, o seu "perfil", é determinado a partir de cima, segundo critérios burocráticos, dependentes das leis do mercado, do comércio e do marketing. Em consequência, são eliminados impiedosamente os projectos de ensino considerados mais "frágeis", aqueles que se destinam a grupos demasiado restritos de consumidores (9). E a mesma coisa se passa com a maior parte dos projectos de investigação fundamental, com aqueles projectos que não respondem exclusivamente a necessidades sociais práticas, nem reflectem apenas a pressa indecorosa de que temos direito a tudo e de que tudo tem um preço. Aliás, as editoras não querem ouvir falar da publicação de projectos de investigação fundamental, receando não ter leitores. E a Fundação para a Ciência e a Tecnologia não lhes é menos hostil, em nome de uma sociedade civil, que por certo não compreenderia o financiamento daquilo que não tem utilidade social (10).
É verdade, há muito que a Universidade passou a ser pensada para alunos médios. E a esta opção estratégica corresponde a ideia de professores igualmente medianos. Talvez radique aí, aliás, a razão da sistemática campanha de desvalorização do pensamento nas instituições de ensino superior. A ideia de índice de produtividade e a permanente chamada ao pedagogismo burocratizam e infantilizam os professores. Uma e outra ideia traduzem uma concepção sensaborona de excelência. Uma e outra não têm a mais pequena grandeza: não têm exigência ética, nem o rosto nem a razão de professores e alunos. O que aí é estimulado são as sensibilidades medianas, que permanecem ligadas a valores tradicionais indiscutíveis, sejam eles éticos, morais, narrativos, pedagógicos e científicos, repetindo até à exaustão aquilo que, sem resistência, é admitido por todos.
Pensado para alunos e professores médios, também na sala de aula o ensino superior se torna, entretanto, melancólico: nenhuma gravidade, nenhuma preocupação pelo estado a que chegamos; uma cada vez mais acentuada impossibilidade para intervir no curso dos acontecimentos; e o pensamento de cócoras, em adejo vão de pássaro desplumado.
Uma aula, hoje, já não é um exercício do olhar. Dificilmente alguma coisa nela exercita os olhos para a calma, dificilmente alguma coisa nela agiliza para um passo de dança. Um aula, hoje, deve contar com marcações regulares, uma espécie de soluços narrativos, com sucessivas rajadas de acetatos e slides. E também pode passar pela conexão a uma espécie de sistema de rega automática, gota-a-gota, com a voz do professor dobrada em fundo pelas imagens de um power point. Nas salas de aula generalizou-se o estilo comercial, num caso o estilo do spot, noutro o do filme de promoção, modos distintos para um mesmo objectivo: a busca da comunicação imediata e a proposta de um sentido à maior velocidade. As aulas não podem, de facto, desmerecer na comparação com o ritmo da comunicação publicitária. Dir-se-ia que exercitar o olhar para a calma e agilizar o pensamento para um ritmo de dança, tornam uma aula lenta, aborrecida, para a qual já não há paciência.
Afunda-se o pensamento, e com ele, é o próprio ideal académico que se afunda. Ou seja, afunda-se a Universidade a golpes de melancolia. Pela minha parte, todavia, gostaria de contrapor à melancolia, a essa sereia estética que se satisfaz em diletantismo descomprometido, o critério ético do desassossego crítico. Ou seja, vejo a Universidade como um lugar de liberdade irrestrita, como o lugar de uma democracia a vir (11). Acima de tudo, a Universidade encarna para mim um princípio de resistência crítica e uma força de dissidência, comandados ambos por aquilo a que Jacques Derrida (2001: 21) chama «uma justiça do pensamento». Penso que é essa, aliás, a missão da Universidade. Cabe-lhe, como finalidade última, a salvaguarda das possibilidades da (a)ventura do pensamento, ou seja, cabe-lhe fazer do ensino e da ciência uma ideia, sem a qual o presente é uma pura forma de onde se ausentou toda a potência.
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VATTIMO, Giorgio,
Notas
1. É de François Lyotard (1993: 90) a ideia de que o imaginário moderno da historicidade é comandado pelo princípio escatológico.
2. Retomando uma clássica formulação de Karl Lövith
3. No Relatório que o Collège de France elaborou em
5. Nas palavras de Benjamin (1992: 34): “quase nada do que acontece é favorável à narrativa e quase tudo à informação”.
6. Veja-se, neste sentido, Jean-Claude Coquet, “Linguistique et Sémiologie” (1987: 10-11).
7. As notícias referidas foram dadas nos telejornais da RTP, canal 1, na semana da Páscoa de 2002 (de 31 de Março a seis de Abril).
8. Esta frase é uma glosa a um excerto do texto de Derrida, L’Écriture de
9. Será que diante do «novo paradigma da democratização e massificação» do ensino superior, só nos resta sujeitarmo-nos às palavras de ordem «just in time» e «just for you», que definitivamente se impõem à lógica do «just in case»? Partindo do princípio de que «muitos conteúdos cognitivos transmitidos [pela Escola] se revelam desnecessários ao longo de toda a carreira profissional dos graduados» (e seria essa a lógica do «just in case»), a única coisa que doravante importaria fazer seria «oferecer aos formandos programas educacionais» que correspondessem «às suas reais necessidades pessoais e profissionais no momento de formação». E uma vez adoptada a ideia do «just in time», cumprir-se-ia, naturalmente, a lógica do «just for you», ou seja, os estudantes poderiam, nestas circunstâncias, «seleccionar, de forma criteriosa, os percursos de formação» que melhor se ajustassem às suas apetências e capaciadades. Veja-se, neste sentido, Sérgio Machado dos Santos (2000 e 2001).
10. No último capítulo de Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, espécie de posfácio a um livro que constitui a sua dissertação de doutoramento, Augusto Santos Silva (1994) fala dos condicionalismos institucionais que marcaram a elaboração da sua tese. O seu testemunho não deixa dúvidas sobre as linhas com que, de um modo geral, se cose a instituição que entre nós tutela a ciência e a investigação. Santos Silva reporta-se a um período de tempo que se estende de
11. Gloso neste ponto a tese de Jacques Derrida (2001), proposta num ensaio recente, significativamente intitutlado: L’Université sans Condition.
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